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Essa enfermidade a que os amantes chamam de ciúme e a que melhor chamariam desespero raivoso tem por componentes a inveja e o menosprezo. Quando tal enfermidade domina a alma enamorada, não existe ponderação que a sossegue nem remédio que a possa curar.
Miguel de Cervantes
Miguel de Cervantes
Amor é um assunto mais do que vasto e polêmico para ser discutido aqui. A amplitude do que pode ser dissertado vai desde opiniões estritamente pessoais e crenças populares - sem preocupações de fundamentação argumentativa -, dogmas religiosos, culturais e imposições de mídia com fins de mercado até a rigorosa “dissecação” filosófica do que se pretende descrever com o têrmo. Não pretendo, diante do “multi-embasamento” de abordagem, me aventurar a experimentar cada “ponto de partida” na tênue esperança por um “esclarecimento” que agrade a “gregos e troianos”. Antes, pelo contrário, sem qualquer desejo de ser popular, me disponho a questionar, a partir do menos comum, os mais vulgares falatórios acerca do tema pois o resultado dessa produção discursiva é o que orienta o enredo desta dissertação.
Para a filosofia, a representação dum objeto pelo pensamento é o que nominamos de conceito. É consenso, nesse círculo da atividade cognitiva humana, a impossibilidade da representação de conceitos absolutos. Podemos discorrer acerca de objetos passíveis de experiência possível. Ou seja: que podem se manifestar no tempo e no espaço; passíveis, portanto, de apreensão direta, imediata e atual de sua realidade individual, por meio da intuição sensível e segundo as leis do entendimento válidas, ao menos, para a nossa espécie. O vocábulo fenômeno à isso se refere. Em oposição a este, temos o númeno, que diz respeito ao objeto inteligível, em oposição aquele que se conhece conforme anteriormente descrito.[1] À essa categoria se inclui o conceito de amor, posto sua inapreensibilidade. A psicologia o estuda como fenômeno “comportamental”, portanto, refere-se a um conjunto de reações observáveis num indivíduo, relativizado a circunstâncias diversas, como ambientais, fisiológicas, culturais, etc. Contudo, toda a ação humana, pode ser adjetivada de virtuosa ou viciosa. Os estudiosos da ética entendem a virtude como a disposição firme e constante para a prática do bem – cujo conceito varia conforme a escola ética – e aceitam o amor, não apenas como virtude, mas como a qualidade que agrega uma série de outras características como sendo da mesma natureza, tais como paciência, justiça, gratidão, etc. À estas podem ser opostas outras tantas, tidas como vícios, tais como ódio, inveja, ganância, ciúme, etc.
No campo comportamental o ciúme tem se mostrado atrelado a profundos sentimentos de insegurança e desconfiança por parte de quem o possui. Isso gera desconforto e angústia não somente para o próprio sujeito mas, também, para o(s) que são objeto desta emoção. Tais aflições podem atualizar, na “vítima” do ciúme, comportamentos afirmativos das fantasias negativas que existiriam, em potência, na imaginação da pessoa enciumada. Pesquisas demonstraram que quanto mais ciúme se sente em relação ao parceiro (em uma relação dita amorosa, por exemplo) mais chances há deste parceiro se envolver com outra pessoa.
“Esse fenômeno, chamado ‘profecia auto-realizadora’, (...) relaciona o ciúme à infidelidade afirmando que o conjunto de crenças ciumentas que se tem a respeito do outro, quando em nível elevado, pode incentivar a outra pessoa a se engajar em comportamentos relacionados à infidelidade pois, sutilmente, essas expectativas de traição são comunicadas a ela.” Isso condiz com a conclusão que caracteriza como mito a afirmação de que a culpa da infidelidade é do traído, por não satisfazer o parceiro. “A ausência (física ou de apoio psicológico) do outro parceiro e a busca pela “novidade” apenas potencializam a traição”.[2]
Relacionamentos entre pessoas encerram em si alguma idéia de “contrato”. Este pode ser mais ou menos explícito, guardando distintos níveis de complexidade. Com pessoas inseguras é mais provável a ocorrência de maior falta de clareza desses contratos, onde diversos itens ficam “subentendidos”, inviabilizando, a partir de um consenso dialógico, uma eqüidade nas atitudes dos envolvidos.
Nem toda relação, ainda que única, tem que, necessariamente, ser excludente de outras. Contudo, compromissos assumidos devem ser honrados. Os que prometem exclusividade em determinadas parcerias como, por exemplo, sexual, devem arcar com as responsabilidades dessa promessa. Promessa essa que não é condição sine qua non para uma relação conjugal.[3] A exclusividade sexual - posto que não é o único[4] objeto de fidelidade que há ou possa haver - será condição ou componente de uma relação, desde que assim tenha sido acordado explicitamente entre as partes.[5]
O que ocorre na maioria dos relacionamentos é que a própria idéia acerca dos sentimentos que unem as pessoas em torno de um “contrato” e os detalhes acerca do mesmo não são discutidos e esclarecidos, quanto mais acordados. Prevalece uma passionalidade desregrada em uma relação de base imatura e acrítica, idealizada individual e privadamente por cada uma das partes. Cobranças descabidas originam-se, assim, de expectativas frustradas, ainda que injustificadas. Desse modo, infidelidade, por maiores que sejam as reações "emocionalóides" e a hipócrita crítica social, é uma ocorrência oriunda de falta de entendimento ou quebra de contrato. Tanto para uma como para outra coisa a clareza é fundamental. As “penas” para as faltas contratuais devem, igualmente, ser claras e mutuamente acordadas.
Todo contrato firmado em sociedade não pode infringir o que é disposto em lei, o mesmo se dando para certas crenças e costumes. Assim, oficialmente, infidelidade não é crime. Pode, até, ser motivo para dissolução da sociedade conjugal, por quebra de contrato, contudo as punições previstas entre as partes, homologadas ou não, estão impossibilitadas de contrariar leis estabelecidas. Assim, destruição de propriedade alheia, agressões e assassinatos não são penas, amparadas juridicamente, para quebra do tipo de contrato em questão. Incorrerão, se cometidos, em crimes, previamente caracterizados na forma da lei.
A intolerância acerca de percepções distintas acerca de contratos mal firmados ou, ainda, para com as faltas, cujas compensações não foram bem designadas ou, sequer, estabelecidas, leva à violência desnecessária e injustificável a nível lógico e racional. Todos os esforços, quase teatrais, por parte de advogados e psicólogos, para justificar e/ou explicar tal comportamento, têm por base argumentos falaciosos e a jurisprudência formada tende a desconsiderá-los. Assim, o "infrator" - ajustado ou não na cultura - pode processar o desajustado[6] por percas e danos (mensuralvelmente comprováveis). A outra parte pode dar o "troco" exigindo compensações por perdas e danos "morais"[7] Ora, o primeiro, também, pode retrucar com outra ação igual, alegando que não consegue mais dormir, abalado que ficou pelo ato violento e temendo novas represálias. Ela (se for o caso e tiver filhos) vai exigir o máximo de pensão. E, no fim das contas desse "ping-pong" pseudo sentimental - pois tem mais de insanidade do que passionalidade (o que já não é bom) - tudo se resume a uma questão pecuniária.
[1] O que Kant denomina objeto, “se restringe a um grupo de noções, semelhante às categorias aristotélicas; tais noções dizem respeito à constituição estrutural do objeto, e por isso se predicam como conceitos que dizem algo do objeto como em si mesmo é. As noções pertencem á área do ‘entendimento’, na qual, segundo Kant, são formas a priori, com as quais o objeto é construído”. (PAULI, Evaldo, Tratado do Belo).
http://www.cfh.ufsc.br/~simpozio/megaestetica/TratBelo/0764y005.htm). Deste modo, o objeto é, para nós, um fenômeno e não a coisa indeterminável que é a coisa-em-si. O objeto, portanto, é a unidade de uma diversidade que o sujeito constitui. “Objeto (...) é aquilo em cujo conceito é reunido o múltiplo de uma intuição dada” (KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Vol. I. e Vol. II. 1991, São Paulo. Coleção Os Pensadores, Nova Cultural).
[2] http://www2.usp.br/index.php/sociedade/238-psicologo-testa-comportamentos-relacionados-a-infidelidade-e-mitos-amorosos
[3] O termo “amorosa” não qualifica bem tal forma de relacionamento, posto que entre pais e filhos, ou entre amigos, a relação também é “amorosa”.
[4] É entendimento vulgar “fidelidade” ser tomada como sinônimo de exclusividade sexual.
[5] O que leva um indivíduo a buscar outras parcerias sexuais é um assunto que, por hora, não faz parte da discussão.
[6] Ainda que qualquer um possa, pelos motivos mais diversos, “surtar”, conforme o jargão psicológico
[7] O que será que pesa mais? As alcunhas chulamente estabelecidas ou as classificações cientificamente impostas?.
Para a filosofia, a representação dum objeto pelo pensamento é o que nominamos de conceito. É consenso, nesse círculo da atividade cognitiva humana, a impossibilidade da representação de conceitos absolutos. Podemos discorrer acerca de objetos passíveis de experiência possível. Ou seja: que podem se manifestar no tempo e no espaço; passíveis, portanto, de apreensão direta, imediata e atual de sua realidade individual, por meio da intuição sensível e segundo as leis do entendimento válidas, ao menos, para a nossa espécie. O vocábulo fenômeno à isso se refere. Em oposição a este, temos o númeno, que diz respeito ao objeto inteligível, em oposição aquele que se conhece conforme anteriormente descrito.[1] À essa categoria se inclui o conceito de amor, posto sua inapreensibilidade. A psicologia o estuda como fenômeno “comportamental”, portanto, refere-se a um conjunto de reações observáveis num indivíduo, relativizado a circunstâncias diversas, como ambientais, fisiológicas, culturais, etc. Contudo, toda a ação humana, pode ser adjetivada de virtuosa ou viciosa. Os estudiosos da ética entendem a virtude como a disposição firme e constante para a prática do bem – cujo conceito varia conforme a escola ética – e aceitam o amor, não apenas como virtude, mas como a qualidade que agrega uma série de outras características como sendo da mesma natureza, tais como paciência, justiça, gratidão, etc. À estas podem ser opostas outras tantas, tidas como vícios, tais como ódio, inveja, ganância, ciúme, etc.
No campo comportamental o ciúme tem se mostrado atrelado a profundos sentimentos de insegurança e desconfiança por parte de quem o possui. Isso gera desconforto e angústia não somente para o próprio sujeito mas, também, para o(s) que são objeto desta emoção. Tais aflições podem atualizar, na “vítima” do ciúme, comportamentos afirmativos das fantasias negativas que existiriam, em potência, na imaginação da pessoa enciumada. Pesquisas demonstraram que quanto mais ciúme se sente em relação ao parceiro (em uma relação dita amorosa, por exemplo) mais chances há deste parceiro se envolver com outra pessoa.
“Esse fenômeno, chamado ‘profecia auto-realizadora’, (...) relaciona o ciúme à infidelidade afirmando que o conjunto de crenças ciumentas que se tem a respeito do outro, quando em nível elevado, pode incentivar a outra pessoa a se engajar em comportamentos relacionados à infidelidade pois, sutilmente, essas expectativas de traição são comunicadas a ela.” Isso condiz com a conclusão que caracteriza como mito a afirmação de que a culpa da infidelidade é do traído, por não satisfazer o parceiro. “A ausência (física ou de apoio psicológico) do outro parceiro e a busca pela “novidade” apenas potencializam a traição”.[2]
Relacionamentos entre pessoas encerram em si alguma idéia de “contrato”. Este pode ser mais ou menos explícito, guardando distintos níveis de complexidade. Com pessoas inseguras é mais provável a ocorrência de maior falta de clareza desses contratos, onde diversos itens ficam “subentendidos”, inviabilizando, a partir de um consenso dialógico, uma eqüidade nas atitudes dos envolvidos.
Nem toda relação, ainda que única, tem que, necessariamente, ser excludente de outras. Contudo, compromissos assumidos devem ser honrados. Os que prometem exclusividade em determinadas parcerias como, por exemplo, sexual, devem arcar com as responsabilidades dessa promessa. Promessa essa que não é condição sine qua non para uma relação conjugal.[3] A exclusividade sexual - posto que não é o único[4] objeto de fidelidade que há ou possa haver - será condição ou componente de uma relação, desde que assim tenha sido acordado explicitamente entre as partes.[5]
O que ocorre na maioria dos relacionamentos é que a própria idéia acerca dos sentimentos que unem as pessoas em torno de um “contrato” e os detalhes acerca do mesmo não são discutidos e esclarecidos, quanto mais acordados. Prevalece uma passionalidade desregrada em uma relação de base imatura e acrítica, idealizada individual e privadamente por cada uma das partes. Cobranças descabidas originam-se, assim, de expectativas frustradas, ainda que injustificadas. Desse modo, infidelidade, por maiores que sejam as reações "emocionalóides" e a hipócrita crítica social, é uma ocorrência oriunda de falta de entendimento ou quebra de contrato. Tanto para uma como para outra coisa a clareza é fundamental. As “penas” para as faltas contratuais devem, igualmente, ser claras e mutuamente acordadas.
Todo contrato firmado em sociedade não pode infringir o que é disposto em lei, o mesmo se dando para certas crenças e costumes. Assim, oficialmente, infidelidade não é crime. Pode, até, ser motivo para dissolução da sociedade conjugal, por quebra de contrato, contudo as punições previstas entre as partes, homologadas ou não, estão impossibilitadas de contrariar leis estabelecidas. Assim, destruição de propriedade alheia, agressões e assassinatos não são penas, amparadas juridicamente, para quebra do tipo de contrato em questão. Incorrerão, se cometidos, em crimes, previamente caracterizados na forma da lei.
A intolerância acerca de percepções distintas acerca de contratos mal firmados ou, ainda, para com as faltas, cujas compensações não foram bem designadas ou, sequer, estabelecidas, leva à violência desnecessária e injustificável a nível lógico e racional. Todos os esforços, quase teatrais, por parte de advogados e psicólogos, para justificar e/ou explicar tal comportamento, têm por base argumentos falaciosos e a jurisprudência formada tende a desconsiderá-los. Assim, o "infrator" - ajustado ou não na cultura - pode processar o desajustado[6] por percas e danos (mensuralvelmente comprováveis). A outra parte pode dar o "troco" exigindo compensações por perdas e danos "morais"[7] Ora, o primeiro, também, pode retrucar com outra ação igual, alegando que não consegue mais dormir, abalado que ficou pelo ato violento e temendo novas represálias. Ela (se for o caso e tiver filhos) vai exigir o máximo de pensão. E, no fim das contas desse "ping-pong" pseudo sentimental - pois tem mais de insanidade do que passionalidade (o que já não é bom) - tudo se resume a uma questão pecuniária.
[1] O que Kant denomina objeto, “se restringe a um grupo de noções, semelhante às categorias aristotélicas; tais noções dizem respeito à constituição estrutural do objeto, e por isso se predicam como conceitos que dizem algo do objeto como em si mesmo é. As noções pertencem á área do ‘entendimento’, na qual, segundo Kant, são formas a priori, com as quais o objeto é construído”. (PAULI, Evaldo, Tratado do Belo).
http://www.cfh.ufsc.br/~simpozio/megaestetica/TratBelo/0764y005.htm). Deste modo, o objeto é, para nós, um fenômeno e não a coisa indeterminável que é a coisa-em-si. O objeto, portanto, é a unidade de uma diversidade que o sujeito constitui. “Objeto (...) é aquilo em cujo conceito é reunido o múltiplo de uma intuição dada” (KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Vol. I. e Vol. II. 1991, São Paulo. Coleção Os Pensadores, Nova Cultural).
[2] http://www2.usp.br/index.php/sociedade/238-psicologo-testa-comportamentos-relacionados-a-infidelidade-e-mitos-amorosos
[3] O termo “amorosa” não qualifica bem tal forma de relacionamento, posto que entre pais e filhos, ou entre amigos, a relação também é “amorosa”.
[4] É entendimento vulgar “fidelidade” ser tomada como sinônimo de exclusividade sexual.
[5] O que leva um indivíduo a buscar outras parcerias sexuais é um assunto que, por hora, não faz parte da discussão.
[6] Ainda que qualquer um possa, pelos motivos mais diversos, “surtar”, conforme o jargão psicológico
[7] O que será que pesa mais? As alcunhas chulamente estabelecidas ou as classificações cientificamente impostas?.
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